Lá fora uma chuva fina e fria cai insistente. Dentro seu Demétrio discute pela milésima vez com Cotinha querendo por o casaco e sair. Ele insiste, argumenta, recorre ao Estatuto do Idoso, ela impacível, implacável nega.
Ele, muito irritado começa a bater o guarda-chuva surrado no chão, ela se desespera, no chão não! Pare!
Ele continua e cada vez bate mais forte. Já espanca o chão sem que a pobre Cotinha consiga faze-lo parar.
Em baixo, Gertrudes despeta e assustada tenta saber de onde vem o ruído. Escuta atenta.
- Ah! Novamente não! Seu Demétrio e Dona Cotinha... Ah,! Isso tem que acabar! Olha as horas e leva um susto, igual ao coelho da Alice, ela percebe que está muito tarde. Troca-se rápido e sai apressadíssima.
Lá em cima, a guerra continua. Ele só para quando ela o deixar sair. Ela não cede. Batem na porta...
Eles interrompem a disputa e olham atentos para a porta. Nova batida. Silêncio absoluto. Novas Batidas, agora bem fortes. A campanhia toca. Tudo em silêncio. Seu Demétrio aproveita o descuido de Cotinha e sai pela cozinha, abre a geladeira e faz xixi. Ela entra em pânico. De novo não! Tudo perdido! Toda a comida. A torta de chocolate do café da manhã, os brigadeiros, tudo... Quase chora. Não contente ele continua sua aventura. Agora golpeia a máquina de lavar que ele chama de traste no caminho. Ele quer sair pelos fundos, mas não há fundos.
Cotinha sem saber o que fazer tenta faze-lo voltar para a sala.Ele encontra a porta do quarto de Cleusa que dorme tranquila depois do diasepan. Sobe na cama e percebe um corpo quente, imediatamente lembra que é um homem e a natureza resolve nesse momento se fazer exuberante. Cotinha dá um grito. Que é isso minha minha gente!
As batidas na porta estão insuportáveis. Precisa de ajuda. Pobre Cleusa. Que vexame. Que constrangimento. Num instante, sem pensar, corre para a sala e abre a porta. Todos entram, o porteiro, Gertrudes, o síndico, os vizinhos todos.
Onde ele está? Perguntam todos. Nesse momento Cleusa grita, o pior aconteceu! Virgem Maria, diz Maria dos prazeres e se acotovelam pela estreita porta da cozinha. Chegam á área de serviço e vêem uma cena chocante. De olhos vermelhos e inchados pelo sono interrompido, com cara de pavor, Cleusa tenta entender o que aconteceu. No chão, caído numa poça de xixi seu Demétrio chora. - Só queria passear na chuva como fazia na infância. Que saudade da infância. Eu era livre, ninguém me prendia. Quero meu pé de graviola. Quero minha pipa.
Olhando a cena, Cotinha não sabia o que fazer. Olhou para os vizinhos e ninguém disse nada. Era comum demais as confusões naquele apartamento e ela não conseguia levar seu Demétrio para um asilo. Cleusa, finalmente acordou e dadas as explicações até riu. Afinal não sentiu nada mesmo. Foi fazer um café depois de se lavar.
Que situação! Repetia Dona Maria. Não seria melhor internar?
Cotinha suspira de dor. Depois de sessenta anos casados, não concebe a ideia de levar o marido para um lar, abrigo, casa de repouso. Acha que ele deve ficar com a familia. Depois da doença degenerativa, da perda da memória, ele ficou mais frágil e virou sua criança. Como abandona-lo? Não conseguia. O amava demais. Principalmente agora que ele não tem noção do tempo. Precisa dela. Os vizinhos compreendiam, claro, mas também precisavam de descanço e as três horas da manhã todos estavam dormindo quando foram acordados e era a terceira vez na semana. Cotinha chora de vergonha , de dor. Ver o marido nessa situação era o que mais doia. Ficaria com ele até o final. Sua decisão e firmeza comovia a todos. Menos dona Maria que morava no segundo andar, bem longe do décimo sétimo, andar de Demétrio e Cotinha. Mas, como disseram os vizinhos, não conta a opinião dela. Ela é a maldade e malidicência em pessoa. Vigia todos mundo. Foram saíndo devagar depois do café da Cleusa. Iam dormir um pouco. Sairam com o desejo de serem amados como seu Demétrio. Um amor assim é difícil de achar num mundo de sentimentos descartáveis.
Dona Cotinha colocou seu Demétrio na cama, escorado na montanha de treveseiros e foi fazer companhia para sua fiel companheira. Ela e Cleusa estavam juntas a quase quarenta anos. Uma cuidava da outra e juntas carregam seu enorme bebe. Não precisavam dizer nada. O suspiro de ambas disse tudo. O abraço perdoou tudo. O tempo cura tudo.
Marizete Pires
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Comentários
Tenho mais medo de ficar velho do que de morrer jovem.
Meu amigo Tyr,
Tudo bem?
Há muito poder nas palavras!
Grande homem.
Como dito logo abaixo o cuidado com um idoso em relação á uma criança deve ser redobrado. Paciencia não pode faltar.
Beijo grande e um abração na sua carteira da OAB!!!!
t+
Maria,
Linda, você já cuidou de idoso?
Como foi?
Oi meninas,
É verdade. Idoso e criança são bem parecidos. Dão um trabalho gigantesco, mas não queremos ficar sem eles.
A diferença está no fato das crianças evoluirem para a independência e os idosos para a completa dependência.
Curioso não é?
Só quem já cuidou de pessoas idosas, sabe o que é...
Quem cuida de um idoso, mas cuida com carinho, paciência e compreensão, é um ser abençoado... porque não é fácil.